Não sei exatamente que horas são; mas posso sentir o cheiro do vento frio que sopra do lado de fora, através dos meus olhos semi aberto posso perceber que ainda é noite, ou madrugada não sei ao certo, como todas as outras mil coisa, nunca sei ao certo, será a memória ou a falta dela; acordo com um gosto estranho na boca, parece que estou de ressaca e sinto meus lábios quase formar um sorriso, há anos não fico de ressaca e isso chega a ser engraçado, aproveito o gosto que vai se desfazendo como minha memória, tento me mexer e percebo que continuo ali parada, minhas pernas estão duras e secas, meu corpo fica todo dolorido, nunca pensei que me sentiria assim, todos dizem que com o chegar da idade as coisas vão mudando e ficando cada vez mais difícil, mas nunca me disseram qual era a intensidade, talvez eles não soubessem ou não se lembravam mais. Olho pro lado em busca de algo que sei não estar lá, mas todo dia acordo com esperança de que tudo fosse como era antes, mas percebo que por mais esperança que tenho, ele não está mais aqui ao meu lado, como prometeu diversas vezes, mas sei que não foi sua culpa a vida é muito mais concreta que todas as palavras e promessas, fico ali fitando o teto, imóvel, tentando me recordar das boas coisas que vivi e peço para que hoje seja o ultimo dia, não sei ao certo se pego no sono ou se simplesmente espero o dia amanhecer, odeio não saber ao certo das coisas, sinto como que tivesse parado de viver por um momento e voltasse em um outro, sem lembranças alguma do que tenha acontecido, ouço os pássaros e vejo o dia querendo invadir meu quarto pela fresta das persianas e percebo que estou na mesma posição de quando dormi, me mexo na esperança das dores terem desaparecidos, mas percebo que estão mais vivas do que minha memória, quanto se tem 89 anos por mais saúde que se tenha, por mais exercícios que se tenha praticado, por mais amor que se tenha feito o seu corpo infelizmente não se lembra de tudo isso.
Sento-me na cama, respiro fundo tentando sugar todas as energias que me restam, sei que hoje é domingo, e se fosse a outra época estaria me arrumando com o vida para ir a missa matinal, porém hoje não tenho mais nem o vida, nem a missa matinal. Ouço baterem na porta e mais uma vez respiro fundo é dia de visita, o domingo é o dia mais esperado pelas minhas companheiras, porém pra mim não faz mais sentido, logo entenderão porque, minha filha entra no quarto, me da um abraço frouxo e pede para que o seu filho de um beijo na vovó, faz aquilo todos os domingos, não temos assunto estou cada dia mais rabugenta; algo que prometi nunca ficar, mas é quase inevitável, não a culpo já não faço mais parte de sua vida como antes, aqui os papeis se invertem ela me dá mingau na boca, algo que não agüento mais comer, porém se quero viver mais uns 5 anos saudável é essa a minha alimentação, preferia viver um mês e saborear os melhores pratos que pudesse, beber um bom vinho e acordar com um gosto de ressaca de verdade, é isso que eu desejo mas ninguém mais se interessa pelos meus desejos, todos decidem por mim, pois eles sabem exatamente o que é bom pra mim, outra coisa que odeio é essa, é como se eu fosse uma criança que não pode escolher nada, não pode ouvir nada, pois acreditam que estou velha demais para entender, ou que vão me aborrecer ao me contarem de fato o que acontece no mundo lá fora, as pessoas tendem a acreditar que com o passar da idade pelo corpo não responder mais, os donos dos corpos também não respondem, porém quem sou eu pra dizer isso, não passo de uma idosa, viúva, com uma filha e um neto, minha história se perdeu, meus desejos se foram com o passar do tempo, meus sonhos só os tenho porque ainda consigo dormir, e ai percebo que é por isso que não tenho vontade de fazer mais nada a não ser dormir, porque é neste momento que minha mente volta nos lugares mais maravilhosos que vivi, sinto os melhores toques, os melhores beijos, os melhores sabores e perfumes e com tudo isso o mais profundo desejo de não despertar mais.
